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Contos-->O Planeta Roxo -- 11/03/2000 - 00:14 (Ciro Inácio Marcondes) Siga o Autor Destaque este autor Envie Outros Textos
Eelan estava perdido no espaço há vários dias. A nave ainda funcionava, mas sabia que os dispositivos logo parariam de funcionar. Sua mente estava exausta. Há 23 horas parara de procurar a esmo por uma estação ou por um posto da UPUC. Estava perdido. Havia perdido contato com os radares e sinalizadores. A carga dentro do compartimento no fundo da nave – 300 toneladas de alimento sintético – jamais chegaria ao seu destino. Tentara estabelecer muitas vezes comunicação com a base, um planeta chamado Corficcian, ou com o destino, um outro planeta, localizado na constelação de Urus, chamado Ka, diametralmente oposto a Corficcian, na constelação de Zâmar. Ele sabia o que havia feito: perdera a rota. Havia dormido, o erro mais fatal que um piloto mental pode cometer. Mas sabia que tinha sorte por esse erro não ter sido fatal. Por enquanto. Desde então, estava buscando na sua mente rotas possíveis para algum lugar habitado, mas tudo lhe parecia distante demais para encontrar alguma coisa. Durante essas últimas 23 horas, não conseguira fazer nada. Estava desanimado, deprimido. Não sabia como achar um caminho de volta, havia esgotado quase toda a energia da nave dando o que supôs serem voltas. Seus mapas holográficos já não funcionavam mais, nem sua mente. Havia retirado as lentes de propulsão de seus olhos, desligado os fios que o ligavam ao cérebro da nave. Suas esperanças estavam praticamente todas perdidas, até que recebeu, depois do que achava serem 22 dias, uma resposta breve, um mero sinal de rádio, sem imagens, sem a exata localização da origem. Exausto, depois do que imaginou ser uma de suas últimas refeições (uma pasta de um grão amarelo chamado Oztrit), resolveu reiniciar as operações da nave e receber a chamada. Sabia que de pouco adiantaria essa mensagem, fosse o que fosse. A nave estava nos fins, sua mente estava esgotada. Não conseguiria pilotá-la para lugar nenhum e nem teria combustível para aquilo. Estava enlouquecido pela velocidade com que viajara os últimos dias (algo em torno de 1000 vezes a velocidade da luz), mas conseguia pensar. Apenas admitia que tinha errado, e tentava se conformar com isso, mesmo achando a morte tola.
O sinal era alto e claro, apesar de ser apenas em viva voz e em linguagem humana:
- Creta. Urus. Setor esférico 499-B. Sistema Zperenk. Corficcian. Contato.
Era voz humana, ele reconhecia. Era alta, clara, suave. Uma voz firme, determinada. Eelan estava sensível. A voz humana o fez despertar. Reagiu mecanicamente. Estava nu, não fazia a barba há dias, sentia uma dor de cabeça que lhe passava uma agonia indescritível, fedia a fezes e urina. Não conseguia pensar, apesar olhar e agir. Levantou-se da cama onde estava deitado, deu alguns passos cambaleantes e caiu no chão. Levantou-se novamente e caminhou instintivamente até a cabine de pilotagem. O corredor até ela era estreito, as luzes estavam apagadas, ele mal conseguia andar. Mesmo assim sabia o que havia acontecido. Não conseguia tirar uma conclusão lógica a respeito daquilo, mas sabia o que ocorrera. Aquilo nunca havia ocorrido antes. Estava acostumado a programar em sua própria mente a rota de cada viagem, que, em tempo real, poderia durar meses. Era uma viagem longa. Havia desconectado os neurônios de seu corpo para que pudessem trabalhar adequadamente no deslocamento da nave. Tudo correto. Enquanto isso ocorria, ele dormia, sabendo que sua mente fazia o papel certo. Mas algo havia dado errado. A rota se desviara por algum motivo, e ele não acordou para se alimentar e para recarregar as atividades do corpo e das suas células cinzentas. Ele não havia chegado ao seu destino, e continuou viajando a esmo, na velocidade da mente, para algum lugar muito, muito distante de Ka. Quando sua mente saturou, ele teve que ser despertado, como medida preventiva organizada pelo próprio cérebro da nave. Estava em algum local do qual ele não fazia idéia de onde ficasse. A nave estava parcialmente destruída, mas ele não sabia exatamente o que havia ocorrido. Poderia ser algum tipo de colisão, ou a nave fora sabotada por algum padrão de sua própria mente. Ele não conseguia compreender. Todos os canais de rádio e comunicação haviam parado de funcionar, os sistemas de energia da nave pifaram. Não havia mais bateria. Esta também estava esgotada. A velocidade que ele alcançara deveria ter sido espantosa. Foi então que ele iniciou a insana viagem consciente através das infinitas rotas possíveis à procura de algum sinal de salvação. Foram 22 dias intensos por alguns finitos caminhos. Agora, ele mal conseguia raciocinar. Sabia apenas que havia dado voltas imensas no espaço, sem chegar a lugar nenhum. Com um leve abano das mãos, os sensores de holograma logo se iniciaram. Algo ainda funcionava.
- .... .... .... . . . a...qui... – foi o que Eelan disse em resposta ao sinal de rádio.
- Creta. Urus. Setor esférico 499-B. Sistema Zperenk. Corficcian. Favor manter os
padrões de comunicação do Universo Conhecido. Caso não esteja à par destas normas, diga as palavras “Central”, “Padrões de Comunicação”, “Humano”, “Creta”. – a resposta levou seis minutos para Eelan recebê-las. Apesar de seu stress mental, conseguiu compreender o que a mensagem significava. Rodou a mensagem de rádio mais quatro vezes até que finalmente conseguiu decorar a ordem das palavras. Ofegante, disse, dentro da cabine de pilotagem:
- Central. Padrões de Comunicação. Humano. Creta.
Logo depois, a cabine foi envolta parcialmente pela realidade virtual apresentada pelo cérebro da nave. Eelan fechou os olhos, porque as luzes o afetavam. Pôde apenas ouvir, em uma voz alta, mecanizada, masculina e intensa, o recado: PARA SE COMUNICAR NA FORMA DE RÁDIO, UTILIZE AS SEGUINTES INSTRUÇÕES-PADRÃO VÁLIDAS EM TODOS OS MEIOS DE COMUNICAÇÃO EM TODA A GALÁXIA DE CRETA:
1: PARA ESTEBELECER CONTATO:
1a: DIGA O NOME DA GALÁXIA ONDE ESTÁ LOCALIZADO O MEIO DE COMUNICAÇÃO. CASO VOCÊ JÁ ESTEJA EM CRETA, DISPENSE ESTE PASSO.
1b: DIGA O NOME DA CONSTELAÇÃO EM QUE O MEIO DE COMUNICAÇÃO ESTÁ LOCALIZADO. CASO O MEIO ESTEJA LOCALIZADO ENTRE CONSTELAÇÕES, DIGA O NOME DA CONSTELAÇÃO MAIS PRÓXIMA.
1c: DIGA O NOME DO SETOR ESFÉRICO E/OU DO SETOR PIRAMIDAL E/OU DO QUADRANTE DA CONSTELAÇÃO EM QUE O MEIO DE COMUNICAÇÃO ESTÁ LOCALIZADO.
1d: DIGA O NOME DO SISTEMA SOLAR OU DO SISTEMA COSMOLÓGICO EM QUE O MEIO DE COMUNICAÇÃO ESTÁ LOCALIZADO. CASO O MEIO ESTEJA ENTRE SISTEMAS, DIGA O NOME DO MAIS PRÓXIMO.
1e: DIGA O NOME DO PLANETA NATURAL OU DO PLANETA ARTIFICIAL OU DO ASTERÓIDE OU DA ESTAÇÃO ESPACIAL OU DA LUA EM QUE O MEIO DE COMUNICAÇÃO ESTÁ LOCALIZADO. CASO O MEIO ESTEJA VIAJANDO NO ESPAÇO, DIGA O NOME DO ESTABELECIMENTO MAIS PRÓXIMO.
1f: DIGA A PALAVRA “CONTATO” DE FORMA CLARA TENTANDO MINIMIZAR O MÁXIMO POSSÍVEL O SOTAQUE DE ORIGEM PARA QUE A PALAVRA SEJA PERFEITAMENTE COMPREENDIDA. VOCÊ DEVE FAZER ISSO COM TODAS AS OUTRAS PALAVRAS QUE DISSER ANTERIORMENTE TAMBÉM. ASSIM QUE ESTE PASSO ESTIVER COMPLETO, O CONTATO TERÁ SIDO ESTABELECIDO E A COMUNICAÇÃO ORAL PODERÁ SER INICIADA.

OBSERVAÇÃO: CASO SEJA IMPOSSÍVEL OU INVIÁVEL PROCEDER DA FORMA DESCRITA ANTERIORMENTE, TENTE SER O MAIS OBJETIVO POSSÍVEL REALIZANDO O MÁXIMO DE PASSOS QUE LHE FOR POSSÍVEL COMUNICAR.

2: DAS NORMAS DE COMUNICAÇÃO POR RÁDIO:

- Pare. – gritou Eelan. Logo depois, a sala virtual desapareceu, e ele retornou à cabine da nave. Havia se lembrado dos procedimentos de comunicação. Ainda estava atordoado, mas começava a pensar novamente. Não podia fazer nada. Nada daquilo era útil. Não fazia idéia de onde estava, os rastreadores e radares não funcionavam mais. Achava que a nave estava saturada. Não estava nem abastecida e nem preparada para viajar tanto tempo em uma velocidade tão grande. Não podia saber se havia um planeta ou estação a 500 quilômetros dali. Como não havia sido detectado por ninguém, supôs que estava perdido em um espaço muito, muito distante de civilização inteligente. O sinal de rádio de Corficcian era sua única esperança.
- Creta. Contato. – disse ele. Eram os únicos passos que poderia responder. Mesmo tendo viajado por mais de dois meses aumentando a velocidade progressivamente até uma velocidade que consumisse praticamente todos os recursos da nave, ele ainda tinha idéia do quanto era necessário para sair da galáxia. Ainda estava em Creta. Era a única coisa que sabia. A resposta, desta vez, veio em quatro minutos:
- Recebemos seu pedido de socorro mas não sabemos exatamente a direção em que você está. Sabemos que está a um raio de dois u.b. de Corficcian, em Urus. Câmbio. – aos poucos, o contato ia ficando mais rápido. A voz ainda funcionava com perfeição, mas apenas o rádio. Eelan abriu um sorriso.
- Eu não sei onde estou. Minha espaçonave se perdeu, preciso de energia e de pilotos. O holo também não funciona. Câmbio.
- Precisamos saber de onde você saiu para podermos localizar sua rota. Há aproximadamente 300.000 locais onde você pode estar, segundo os cálculos de nossos computadores. Você está muito distante. Quase na fronteira com Ata ou quase na fronteira com Logus. Percebe como nós não temos base para te dar uma resposta definitiva? Câmbio.
- Vou tentar fazer uma releitura da minha rota pelos computadores manuais. Minha mente está fervendo. Não posso mais pilotar. Cometi um ato estúpido por impulso. Viajei por 22 dias reais por rotas incertas. Não fiz trajetória retilínea. Posso estar em qualquer lugar, mas suponho que não esteja nem em Ata, nem em Logus. – disse ele. Nesse instante, a comunicação já era instantânea, o que eliminava a necessidade da palavra “câmbio”.
- Por favor, você tem que tentar se conectar ao cérebro da nave para procurar sua rota, senão não poderemos ajudá-lo.
- Eu estou fatigado. Se eu conectar, posso morrer.
- É uma ação simples. Não exigirá muito. Concentre-se, coloque as lentes de conexão, procure a rota, transfira-a para o computador físico e saia. Não levará mais do que um minuto.
- Tudo bem. Vou tentar fazer isso. – respondeu Eelan. Aos poucos, recobrava a consciência e conseguia raciocinar novamente. Há vários meses não falava com ninguém, suas cordas vocais ainda estavam fracas, sua voz estava rouca e baixa. Mesmo assim, sua capacidade mental era muito alta. Pilotos humanos desenvolviam um raciocínio muito rápido em poucos meses de treino. Eelan já pilotava há anos. Possuía uma capacidade de raciocinar muito mais alta do que a maioria dos humanos. Às vezes, tinha surtos de pânico. Sua mente hibernava hiperativa no espaço. Ele tinha o poder de movimentar o que quisesse, na velocidade que quisesse, e tinha consciência da assustadora realidade que era aquilo. Às vezes, ficava louco com a solidão e levava meses para se recuperar.
Colocou as lentes de propulsão nos olhos e começou a transitar pela “mente” da nave: praticamente tudo estava destruído. Pouca informação havia restado. A nave estava doente. Logo, ele confirmou o que já parecia certo: quase todas as funções estavam inutilizadas, mas ainda poderia se deslocar, se quisesse se arriscar. A rotas também estavam claras e limpas. Em menos de um segundo, transferiu todas para o computador físico da nave. Surpreendia-se com a lucidez com que viajava pelo espaço virtual dos comandos. Sua mente era mais forte do que pensava. Resolveu arriscar: procuraria pela avaria. Em pouco tempo, encontrou-a também: a nave havia sido desviada por uma colisão com uma estrela! Ele não conseguia acreditar naquilo. Aos poucos, foi desvendando os caminhos traçados pelo seu estado mental há três meses reais. Sua mente o havia conduzido àquela estrela. Ele mesmo havia desviado a rota, mas não fazia a menor idéia do porquê daquilo. Só sabia que, pouco antes da colisão, seus mesmos pensamentos o teleportaram para longe. Na verdade, apenas movimentou a nave em uma velocidade rápida demais para que o movimento fosse considerado uma trajetória. Sua mente havia feito um milagre, e, logo depois, outro. Era espantoso.
- Conseguiu recuperar a trajetória? – perguntou a voz do rádio após cinco longos minutos. Ele parecia tenso.
- Sim. – Respondeu Eeelan, retirando as lentes de propulsão e respirando o mais fundo que conseguia.
- Meu oxigênio está muito baixo. A nave não vai conseguir reciclá-lo. As luzes deixaram de funcionar, os sistemas naturais também. Acho que não durarei mais dois dias aqui. – disse ele, sem demonstrar emoção.
- Você conseguiu se localizar? Nós não podemos fazer nada. Ondas de rádio são muito limitadas. Nem mesmo seu holo está funcionando?
- Não. Nem holo, nem rede. Esta é a única comunicação que podemos fazer. Eu consegui me localizar. Estou em Fi-naer. Setor piramidal 2, setor esférico 556, quadrante 35. Não estou perto de nenhum sistema solar e há um sistema cosmológico catalogado K-2-44 muito próximo. Tem idéia do que seja isso?
- Espere um minuto. Iremos checar. Você está MUITO longe.
Um minuto depois:
- Você precisa sair de Fi-naer. Não há vida num raio de 44 u.q. de onde você está. Compreende? – disse a voz. Eelan começou a ficar nervoso. Não sabia o que faria. Estava num lugar desolado, muito próximo a rochas vazias e radioativas.
- Não posso. Repito: não posso. Minha nave não tem condições de fazer essa viagem. Não há naves cargueiras, patrulheiros ou estações por aqui?
- Não. Uma frota de 1000 naves descarrega lixo espacial nas rochas que existem por aí uma vez a cada cinco anos. A última vez que fizeram isso foi há cinco meses. Não há nada aí.
- Então, vocês terão que me resgatar! Eu tenho apenas dois dias de oxigênio. Se tentar hibernar de novo, terei morte cerebral. Não conseguirei viajar uma distância grande!
- Não temos como chegar aí em dois dias! Você terá que procurar um sol e se abastecer com radiação solar.
- Não há como! Repito: não posso viajar. Posso sofrer morte cerebral. Mande um Tenúi. Eles viajam muito mais rápido!
- Não podemos. Nenhum Tenúi que temos aqui pode chegar aí tão rápido. Acho que apenas gente do conselho pode fazer isso, e falar com um desses demoraria mais do que dois dias. É impossível! Sinto muito. Vou tentar localizar um sol nas proximidades para você.
Eelan sentiu suor frio descer por sua testa. Era uma pessoa solitária, mas não achava que merecia morrer de uma forma gélida. Não queria acabar conscientemente no coração de uma constelação sem vida e cheia de estrelas mortas. Tentava manter a calma e a frieza, mas achava isso muito difícil. Sentia a agonia percorrer seu corpo. Seus olhos derramavam lágrimas que se congelavam logo após serem excretadas. Estava muito, muito frio, e ele estava nu. Foram minutos tensos.

- Você tem muita sorte! Qual o seu nome? – disse a voz, euforicamente.
- O que você encontrou?
- Qual o seu nome, meu amigo? Estou feliz por você.
- Eelan. O que você encontrou?
- Há uma base perto de uma estrela chamada Collunia. Um planetinha frio que foi colonizado há mais de 100 anos. Ainda tem gente lá, e um espaçoporto improvisado. Eu não posso garantir nada, mas talvez haja combustível. Mas não tenho certeza. A tecnologia que eles usam é tão obsoleta que eu não consigo fazer nenhum contato. O planeta se chama Sontrun. Ouviu? Sontrun.
- Me dê as coordenadas desse lugar. Eu posso chegar lá sem utilizar a velocidade mental?
- Não. Ele está há dois u.q. de você. Se usar a velocidade da luz, vai levar alguns dias. Você tem pouco oxigênio. O planeta tem oxigênio, tem ecossistema. Temos pouca informação de lá, mas é habitável. Você vai precisar fazer um esforço e se locomover na sua velocidade. Se conseguir ser rápido, vai chegar lá em três minutos. É uma coincidência incrível! Você deve ser iluminado!
- Olha, eu vou tentar, mas preciso que vocês confirmem o resgate. Vocês enviarão um resgate para lá?
- Sim, mas isso pode levar dias. Tente se acomodar com o povo de lá. Segundo o que consta aqui, só há humanos lá. Nós faremos contato com a sua nave assim que formos enviar o resgate. Tente preservar a sua carga de qualquer jeito. Enviar um piloto mental vai custar muito caro para a companhia. Você está de acordo em arcar com essas conseqüências?
- Sim! Me avisem quando forem enviar. Vou agora tentar viajar para lá. Assim que chegar, refaço o contato.
- Ok. Vamos começar a preparar a operação de resgate por aqui. Então, está tudo certo?
- Sim. Pode desligar.
- Câmbio, e desligo.


Eelan vestiu-se, cortou os cabelos e a barba antes de descer. Era um frio gélido, e mesmo as roupas térmicas de pouco adiantavam em um ambiente como aquele. O povo de Sontrum havia demorado para responder. Eelan não sabia o que esperar. Era um planeta roxo. Ele nunca vira nada igual. Uma coisinha mínima, pouco maior que uma luazinha de sétima grandeza, 5.000.000 de quilômetros quadrados de área transitando solitária bem longe da estrelinha que lhe abastecia de luz e calor. A órbita era tranqüila, o planeta girava devagar, mas precisava de muito pouco calor para se esquentar. Eelan não conseguiu identificar cidades e nem complexos na órbita que fazia em torno do planetinha. Não conseguiu ver vegetação, iluminação, nada. Apenas uma camada de pedra e neve roxas que cobriam o planeta todo. A comunicação feita com os Sontrumianos também havia sido incógnita. Nem uma palavra falada, apesar um sinal de confirmação. Nem um holograma, nem mesmo um sinal de rádio, nem uma comunicação por satélite. Não havia satélites artificiais orbitando o planeta. Recebido apenas uma mensagem escrita, em humano, por rede: “Recebemos sua comunicação. O porto para aterrissagem está expandido. Tens autorização”. Não sabia o que esperar. A comunicação por escrito era estranha demais para ele. E a linguagem que utilizavam mais ainda. Não sabia nada sobre aquele planeta. Praticamente todos os dados da mente da nave haviam se apagado. A rede estava fora de alcance. O planeta roxo era uma ilha perdida no espaço.
Quando Eelan saiu da nave, precisou colocar os óculos para poder enxergar melhor. Na verdade, precisou colocar os óculos para enxergar qualquer coisa. Tudo o que viu, quando desceu a escada sob um vento fortíssimo, foi roxo. Não conseguia enxergar nada além de roxo. Parecia estar dentro de uma sala onde só houvesse fumaça roxa, e mais nada. Quando foi pousar a nave, já havia sentido a mesma dificuldade, mas a própria nave resolvera o problema com o pouso automático. Eelan não conseguia enxergar nada, e seus pulmões logo se encheram de fumaça roxa. A primeira reação foi tosse. A segunda, vômito. A terceira, lágrimas. A quarta, irritação agressiva na pele. A quinta, voltar para a nave. Subiu a escada rapidamente puxando o pouco oxigênio que restava lá dentro. Pensara que o ar de Sontrum continha oxigênio. Não continha! A gravidade era baixa, era difícil se equilibrar sobre o solo. Ele sentiu tonturas. Fora idiotice descer em solo sem um traje espacial. Estupidez, na verdade. Não cometeria o mesmo erro. Encheu os tubos do traje espacial com o pouco de oxigênio que restava, vestiu-se e desceu novamente. Não conseguiu mais fazer contato com a base em Corficcian. Sontrum era a sua última esperança. Estava muito fatigado, não conseguiria pilotar mais nada. Quase rezava para que os sontrumianos fossem amistosos. Sentia a morte cada vez mais perto. A lógica dizia que a sobrevivência seria sorte demais. Era possível sentir o cheiro da poeira radioativa naquele lugar. Era sufocante.
Desceu novamente. Havia um tanque de oxigênio de emergência nas suas costas, mais nada. Se os habitantes do planeta roxo não tivessem oxigênio, aquele era o último ar que respiraria. Cada vez mais acreditava nisso, e a cada vez mais a adrenalina corria pelo seu corpo. Estava ofegante. Tentava puxar o ar lentamente para não desperdiçá-lo. Prendia nos pulmões o máximo possível. A ventania roxa quase o derrubou. Na verdade, não era um roxo forte. Era púrpura claro, quase rosado. Aos poucos, percebeu que podia enxergar através da névoa colorida. Manteve a calma, e começou a caminhar por uma esteira de metal desligada. Eram sinais de civilização. Os sontrumianos existiam mesmo, então. Andava em passos cada vez mais rápidos, enxergando apenas o chão, quando de repente trombou com um corpo quente e caiu no chão. Ficou rolando pela esteira tentando alcançar algo em que se apoiar, perdido na ventania roxa, até sentir uma mão segurando a sua e erguendo-o novamente. Quando se levantou, finalmente viu a face do homem que havia enviado a mensagem escrita à nave: era mesmo um homem, um ser humano.
Ainda sem perceber direito o que se passava, Eelan foi conduzido para dentro de um complexo fora da ventania. Havia pousado no tal espaçoporto, que era na verdade um espaço onde cabia apenas uma nave de porte médio, como a sua. Ele não conseguia ouvir o que o homem dizia, apesar de perceber que ele dizia alguma coisa. Quando entraram, a ventania parou e o ar ficou mais claro. O local aonde estavam era bem mais quente, mas tudo continuava com a coloração roxo-rosada. Eelan podia ver: o homem à sua frente era muito estranho. Suas feições eram plásticas, seus cabelos e barba eram finos e longos. Ele vestia grossas roupas de pele sintética, seus dentes eram grandes, assim como as orelhas e os olhos. E ele era roxo. Todo roxo: os olhos, os cabelos, a pele, as unhas. Ele era um homem, de feições grosseiras, mas um homem. Eelan conhecia os alienígenas. Apesar de saber da existência de outras raças com colorações diferentes, como os Álamos alaranjados e os Béltimos azuis, ele conseguia identificá-las pelas características usuais. Aquele homem era humano. Ele tinha feições humanas, aparência humana, mas... era roxo!
- Você retira esse chapéu. – disse homem. Foram as primeiras palavras que Eelan conseguiu compreender. O homem fazia um gesto repetido para que ele retirasse o capacete.
- O quê? – respondeu ele. Sabia do que se tratava, mas tentava entender o que ele dizia.
- A chapéu! Retira! – disse o homem, ainda repetindo o mesmo gesto.
- Se refere ao capacete? Não posso! Onde tem oxigênio?
- Oxigênio?
- Ar! O! Como você respira?
- Ar? Vento é suctível! – respondeu ele, balançando as mãos como que para mostrar o ar que os envolvia.
- Tem certeza?
- Quê?
- Você está certo disso?
- Não entendo! – disse o homem. Eelan logo percebeu: ele não sabia falar a linguagem humana direito. Só havia uma opção: testar a sorte. Aquele homem parecia humano. Poderia ser uma mutação incrível, mas, se era humano, tinha que respirar oxigênio, não havia outra forma. Talvez dentro daquele complexo existisse oxigênio. Retirou a máscara e seus olhos começaram a lacrimejar imediatamente.
- Não consigo abrir os olhos! – disse ele, em voz alta. O som também parecia estranhamente baixo naquele lugar. Ainda não conseguira ver nada além daquele homem. A névoa roxa o impedia de ver muito além de uma distância de dois metros. Não conseguia abrir os olhos, mas percebeu que podia respirar. Na hora, a confirmação do fato lhe rendeu um inesperado ataque de riso. Parecia estimulado por alguma coisa. Ria muito e puxava muito ar roxo para os seus pulmões. E os pulmões agradeciam: fosse o que fosse a coisa roxa, havia oxigênio ali. Era estranho, rarefeito, mas parecia que iria sobreviver.
- Abre! Abre e vê! – disse o homem, que também ria da situação. Eelan obedeceu. Seus olhos estavam em puro sangue graças aos vasos estourados, mas ele se deu ao esforço. Conseguia enxergar, conseguia manter os olhos abertos. Era doloroso, mas conseguia.
- Vem! Irarei voltá-lo para a local!
- Não estou te entendendo. Me leve para um local onde não tem essa névoa roxa. – disse Eelan. O homem riu. Para ele, aquilo era ridículo.

- Então, o planeta todo é envolto por esse ar roxo? – perguntou Eelan. Estava em um local acochegante. O homem era hospitaleiro. Chamava-se Hai-kensh. Explicara a ele que há muito tempo ninguém do espaço vinha em Sontrum. As máquinas ali não funcionavam direito. Ele era o único no planeta instruído a fazer contato com seres de fora. Era o único que sabia mexer no meio de comunicação espacial, assim como nos computadores centrais e no espaçoporto. Hai-kensh estava sorridente. Dissera-lhe que gostara da visita, que gostava de estudar os homens de fora. Se considerava um cientista, e fazia pesquisas sobre a fauna e o clima de Sontrum. Estavam sentados em uma pequena sala de visitas dentro do pequeno complexo do espaçoporto. Apenas Hai-kansh entrava ali. Era o único no planeta inteiro que entendia a linguagem humana.
- Sim. É pil. – respondeu ele. Eelan sentava-se na única cadeira gravitacional que funcionava. Estava confortável. Hai-kensh estava de pé, andando de um lado para o outro. O ar roxo não havia desaparecido: estava por toda parte, em todos os lugares. A pele de Eelan, os olhos, a boca, estavam todos irritados. Porém, aos poucos, ele começava a se acostumar. A sensação era a pior possível.
- Pil?
- Pil. O elemento... roxo... se chama pil.
- O que é esse pil? – perguntou. Apertava as mãos uma contra a outra friccionando-as: o planeta era muito frio.
- O elemento que modifica nosso vento rosa. Está dentro de tudo. Professor Gantis revelou tudo. – Hai-kensh era enigmático. Suas palavras eram quase incompreensíveis. O sotaque era muito estranho. Eelan nunca ouvira alguém falar Humano daquele jeito. Não que isso fosse surpreendente. Havia milhões e milhões de sotaques diferentes espalhados pelo Universo Conhecido. Mas aquele sotaque tinha algo de estranho. Hai-kensh falava como um pato, os sons eram todos muito anasalados. Conhecia muitas línguas, e muitos sotaques diferentes, mas aquilo parecia esquisito demais.
- Porque só você fala Humano aqui? Vocês não são todos humanos? – indagou.
- Sim. Ninguém usufrui dessa linguagem. Mamesmo não dizia nada acontecem oitenta anos. Madizer kirss.
- Como?
- Ma dizer kirss. O linguagem. Mas ma adaptar facilmente. Ma há de recordar a idioma.
- Está difícil de entender. O que é kirss?
- Idioma.
- Idioma? É a língua que vocês falam?
- Sim.
- E de onde vem esse kirss?
- Muito longe. Antepassados colonizadores.
- Todos aqui falam kirss?
- Sim. Ma solitário em idioma universal.
- Há mais de cem anos que ninguém aparece aqui?
- Não. Mas ma... Eu. Lembrar facilmente.
- Lembrar? Lembrar o quê? Você se lembra da última vez que estiveram aqui?
- Sim. Mas não isso. Eu lembrar facilmente idioma. Memória boa. Idioma simples. Idioma fácil. Mas professor Gantis o último a estudar Sontrum. Professor Gantis está morto cem anos atrás.
Era impressionante. Aos poucos, Hai-kensh melhorava o idioma humano. Uma adaptabilidade vista apenas em poucos telepatas.
- Você está se recordando do idioma humano? – perguntou Eelan.
- Sim. É uma idioma fácil. Usufrui.... usar... faz palavras voltarem à mente. Mais simples que kirss.
- Isso é incrível.
- Não. Isso comum. Isso é comum. Comum aqui. Tu verás.
- E quem é esse professor Gantis?
- Última pessoa antes de ma... eu. Última pessoa a estudar Sontrum antes de eu... mim. Última pessoa antes de mim a estudar Sontrum. Humano do espaço. Os estudos de Gantis ajudam mesmo hoje.
- E como você consegue conviver com esse... pil? Essa coisa roxa! Isso é muito danoso. Eu não sei se vou agüentar ficar aqui por mais tempo. – Hai-kensh riu.
- Tu estás vivo, noeiak? Não?
- Sim, mas minha pele arde. Não posso ficar aqui por muito tempo. Meu organismo não está acostumado a essas condições de clima e de... e essa coisa roxa. Meu organismo vai tentar expulsar isso do meu corpo. Posso ter náuseas, vômitos...
- Tua pele arde. Adapte-se, Keelan. Eelan. Apenas adapte-se. Tu não terás outras direcionamentos...opções... escolha. Não terás outra escolha. Adapte-se.
- Acho que tem razão. Não posso fazer nada. Preciso voltar à nave para tentar me comunicar novamente com Corficcian.
- Está tudo perfeito. Posso mostrar as proximidades, caso queira.
- Sim, eu gostaria. Vocês não têm holos?
- Holos? Não. Gantis morreu, equipamento de contato morreu junto. Tudo está inutilizado. Mas vamos. Vamos dar uma volta.

O contato com Corficcian havia se perdido. Eelan estava preso em Sontrum. Não havia como se comunicar, teria que passar dias naquele planeta roxo até que o resgate chegasse. Estava lá há um dia. Os sontrumianos eram simpáticos, impressionantes. Eelan havia conhecido a família de Hai-kensh, com quem fizera uma exploração rápida pela região. Era um mundo estranho. Tudo parecia ser contaminado pela substância roxa, desde as pedras, a água, o ar, as pessoas, o animais, os vegetais, tudo. O planeta era todo recheado de “pil” por toda parte. Eram poucas pessoas que viviam ali. Além de Hai-kensh e sua família, apenas outras quatro famílias formavam um pentágono de construções cilíndricas roxas que eram suas habitações. Na verdade, eram os complexos de pesquisa instalados pelos colonizadores quando eles haviam chegado, segundo Hai-kensh, há mais de 300 anos. Isso remontava às primeiras explorações de Fi-naer, o único lugar sem vida de Creta. Provavelmente Hai-kensh estava lá desde então. Ou então o pai ou algum ancestral próximo dele. Os sontrumianos viviam em um regime de trabalho coletivo, e tudo era dividido entre todos. Era uma cultura estranha. Hai-kensh possuía filhos em todas as famílias, e eles freqüentemente trocavam seus membros para práticas sexuais com os vizinhos. A reprodução era controlada. O cotidiano deles era um misto de primitivismo e modernismo social: utilizavam congelamento de embriões, escolhiam os genes dos próprios filhos, entretiam-se em leituras complexas adquiridas nos arquivos dos computadores, mas viviam como pescadores pacatos, num regime quase bucólico. A fala deles era mansa, e todos possuíam o som anasalado da voz de Hai-kensh. Mas Eelan pôde conhecer apenas uma família naquele dia. Eles eram surpreendentes.
A água de Sontrum era roxa, muito escura. Parecia que o pil se manifestava de maneira mais forte nos líquidos. O sangue dos sontrumianos também era roxo escuro. A água possuía um gosto forte, amargo, assim como quase tudo no planeta, incluindo os alimentos. Era difícil para Eelan bebê-la, mas os sontrumianos diziam não sentir gosto nenhum nela. Diziam nem imaginar como seria a água que ele – Eelan – bebia em sua terra natal. “Não conseguimos imaginar água com gosto diferente desse”, diziam eles. E diziam em linguagem humana. Era a aptidão mais impressionante deles: aprendiam tudo muito rápido. Eelan conhecera três filhas de Hai-kensh – Ayla, Etrusci e Joy -, duas de suas esposas – Dzovki e Opioni, três de seus irmãos – Os-Tatch, Gavian e Lissa – e o seu pequeno filho de quatro anos, Api. Em pouco mais de quatro horas, todos eles estavam se comunicando em Humano com ele. No dia seguinte, quando acordou, todos eles já falavam a língua impecavelmente. Todos sabiam utilizar todos os comando tecnológicos dos complexos, assim como todos sabiam dirigir os transportes, tanto aéreos, quanto terrestres, quanto aquáticos. Todos eram evidentemente humanos, mas possuíam as mesmas características peculiares de Hai-kensh: olhos e orelhas grandes, pêlos negros e finos, pele roxa, clara ou escura. E eram simpáticos, interessados, pareciam gostar muito de Eelan. As terras do lado de fora dos complexos eram muito frias, obrigando-os a utilizar estranhas roupas sintéticas feitas a partir do DNA dos animais da neve. Para se alimentar, caçavam, e comiam carne crua.
- De onde você vem, Eelan? Como é o mundo de onde você vem? – perguntou Ayla, a filha mais velha de Hai-kensh. Era um presente para ele, como o próprio havia dito. Eelan poderia desfrutar de noite de deleite com a filha do anfitrião. Nunca tinha visto algo assim, a não ser em comunidades primitivas. E, por mais que os sontrumianos tivessem hábitos primitivos e parecessem uma comunidade primitiva, eles não eram primitivos.
- Eu venho de um planeta em Lâmar. É longe daqui. Mas meu lar é o espaço. Passo a maior parte do meu tempo viajando. – respondeu ele, de maneira tristonha. A moça era muito estranha. Era a filha mais velha, tinha mais de 50 anos. Sua cabeça era grande, os olhos também. A íris era de um púrpura profundo, os cabelos eram raspados, assim como as sobrancelhas e os pêlos do corpo. A imagem das mulheres sontrumianas incomodava Eelan. Ele não tinha esposa, suas experiências sexuais haviam sido muito limitadas durante sua vida. Ele vivia no espaço, satisfazia-se com algumas prostitutas às vezes, mas era um homem completamente solitário.
- Nós temos acessos a algumas informações, muitos e muitos holos de outras mundos aqui, mas tudo me parece muito difícil de acreditar.
- Como assim? – perguntou ele. O menino, filho de Hai-kensh, Api, também estava lá. Os três estavam pescando na beira de um imenso lago gelado. As criaturas que lá habitavam eram quase todas peludas. Eles já haviam “pescado” cerca de cinco cobras peludas, que Ayla abria na mesma hora, ainda vivas, com uma faca, retirava lascas de carne e comia. O pequeno fazia o mesmo, e sorria com gosto. Eelan ainda não havia provado. Estava acostumado a alimentos sintéticos, papas amarelas, verdes, coisas gosmentas e artificiais que se comia no espaço.
- Nós não nos interessamos por outros mundos. Nosso mundo é Sontrum.
- Mas porquê? Vocês têm uma habilidade fantástica de aprender as coisas! Esse jeito que vocês aprenderam a minha língua, nenhum outro humano aprender as coisas assim. Vocês poderiam estudar, fazer pesquisas...
- Nós não queremos isso.
- Porque não?
- E porque sim? Que diferença faria? – disse ela, enquanto o menino, que escutava tudo com atenção, abria mais uma cobra peluda do lago.
- Vocês poderiam avançar a nossa ciência, poderiam ajudar de muitas formas, na política econômica, social, o mundo precisa de pessoas com essa aptidão.
- Não. Ninguém precisa de nós a não ser nós mesmos. Nós vivemos a nossa própria realidade, e é fácil nos conformarmos com ela. Porque você acha que precisamos estudar, aprender e mostrar resultados? Nós precisamos viver, e apenas isso. – disse Ayla, calmamente. A frieza com que ela dizia aquilo espantava Eelan. O menino sorria.
- Vocês não se interessam em estudar e aprender nada?
- Poucas coisas, necessárias à nossa sobrevivência e... a única palavra que posso encontrar no vocabulário humano que represente aproximadamente – mas não exatamente – o que quero dizer é... felicidade.
- Vocês não produzem nenhum tipo de arte? Vivem apenas caçando, se alimentando, se reproduzindo?
- E conversando, colocando nossas idéias, acrescentando experiências às nossas descobertas naturais. Nós temos curiosidade, sim, mas não queremos criar a tecnologia que vocês criaram. Nosso mundo é muito limitado. Não temos muito o que fazer aqui. Nós sobrevivemos, então buscamos paz.
- Por isso vocês cortam contatos com o resto do universo?
- Em parte. Eles cortam contatos conosco. Este setor do universo é contaminado. Não há nada aqui. Aqui é como todos o resto do universo, o que vocês chamam de universo desconhecido: não há nada.
- Mas vocês não são hostis com quem vem de fora.
- E porque seríamos? Não temos nada contra quem vem de fora. Nós adoramos quem vem de fora, apesar da melancolia que se abate graças à expectativa.
- Como assim?
- Você vai saber. É inevitável. – Eelan se sentia confuso. Não sabia como interpretar as palavras dos sontrumianos. Eles pareciam ter uma filosofia de vida profunda, mas incoerente. Um povo extremamente capaz de realizar atos incríveis, tanto físicos quanto mentais, mas um povo estéril, sem capacidade, ou vontade, de criar.

No dia seguinte, Eelan teve acesso aos estudos e pesquisas do professor Gantis. Eurakean Maneda Gantis, um homem que dedicou sua vida e todos os fundos de suas instituições para montar a base de estudos de Sontrum. Há cento e seis anos, quando tinha oitenta e oito, Gantis havia descido em Sontrum junto a uma equipe de vinte de cinco cientistas e as famílias de alguns deles para estudar a fauna, a flora e a constituição das substâncias do planeta. Havia, nos computadores das salas de pesquisa, centenas de textos e resultados das pesquisas. Eelan estava sozinho. Havia sido recomendado por Hai-kensh que lesse os resultados principais. “Leia, e entenda o que dizemos em relação a você”. Em apenas dois dias de estadia no planeta, a família de Hai-kensh havia sido muito afetuosa. Todos pareciam se sentir bem com a presença de Eelan. Ele pensava se eles se sentiam solitários, ou se a presença de alguém estranho causasse sempre algum tipo de euforia inesperada na rotina árcade dos sontrumianos. A mensagem a Corficcian ainda não obtivera resposta. Mesmo assim, Eelan não se sentia angustiado. Era tratado com afeto, e já havia se acostumado a comer carne. Começava inclusive a gostar dos hábitos deles. Comiam carne crua, bebiam grandes cálices de sangue puro de diversos tipos de animais todos os dias. Dentro dos cilindros de pesquisa, que eram os lugares aonde eles moravam, eles brincavam com jogos estranhos praticamente o dia inteiro, ou faziam exercícios de meditação, ou dormiam. Os homens eram mais estranhos que as mulheres. Falavam pouco, riam muito. Todos eles preferiam falar muito pouco entre si, e fazer muitas perguntas para Eelan. Eles eram curiosos, mas não levavam a curiosidade adiante. Todos estavam perfeitamente adequados e adaptados à tecnologia (já obsoleta) que se espalhava por todo o complexo, mas ninguém parecia disposto a querer ampliá-la, ou consertar falhas nos sistemas. Eles simplesmente se adaptavam, levavam o conceito evolutivo até as últimas conseqüências. E todos formulavam frases muito bem construídas, como se conhecessem bem a língua, já. As mulheres, mais rápido ainda. Era impressionante. Quase todos dormiam em camas gravitacionais, todos sabiam como funcionavam as camas gravitacionais, mas nenhum deles tinha vontade nem empenho para fazer novas camas gravitacionais para as três pessoas da família que haviam ficado sem elas. Era uma cultura muito própria, e intrigante.
Gantis havia descoberto muita coisa sobre Sontrum, e o porquê das coisas funcionarem daquele jeito naquele planeta. Ele mesmo havia denominado a substância que estava presente em todos os componentes do planeta, o pil: uma abreviação de “pílula da existência”. Em Sontrum, tudo continha pil. Assim como tudo o que é vivo contém carbono, em Sontrum, tudo o que existe contém pil. E pil é a substância que deixa tudo roxo. Eelan ainda não se acostumara principalmente à visão das coisas sob a névoas de pil. A visão era, certamente, o sentido mais deficitado dos sontrumianos. Gantis afirmava que as mutações provocadas pelo pil nos seres humanos eram tantas que era praticamente impossível classificar os sobreviventes como seres da mesma raça. “Sobreviventes”, pensou Eelan, enquanto ouvia os documentos, que eram apresentados à sua mente por realidade virtual. Segundo esses documentos, a vida foi trazida pelos humanos a Sontrum, há mais de trezentos anos, e desde então tem se adaptado de forma impressionante, com a formação muito veloz de uma cadeia alimentar bastante complexa. Como todos os primeiros exploradores haviam morrido, as evidências da evolução no planeta ficaram muito tempo sem serem descobertas. Apenas Gantis, duzentos anos depois, descobriu que muitas das famílias dos cientistas haviam sobrevivido, e resolveu financiar a pesquisa sobre aquele planeta estranho.
Mas Gantis também morreu em Sontrum, vítima de seu próprio objeto de estudo: o próprio planeta. Segundo os documentos, pil era uma substância extremamente adaptável a qualquer tipo de matéria física. Qualquer substância que mantivesse contato prolongado com pil possuiria, mais tarde, pil em sua composição. E isso incluía os seres vivos. A maioria sucumbiu à intoxicação brutal que a substância causava. Nos seres vivos, pil se alastra com uma velocidade impressionante. A cada respirada de um ser humano, trilhões e trilhões de partículas de pil se acoplavam em seu organismo, reduzindo as defesas naturais a praticamente nada. Era uma substância de poder incrível, o que encorajou os primeiros cientistas a abandonarem as pesquisas antes que fosse tarde. Mas já era tarde. Uma vez infectado, o ser vivo entraria em uma questão que apenas a evolução poderia explicar: ou morria, intoxicado, ou se adaptava e sobrevivia. A maioria dos sontrumianos hoje eram descendentes dos primeiros colonizadores, que decidiram não voltar para o espaço para não levar a substância para outros planetas e contaminar civilizações inteiras. Por isso Sontrum aos poucos foi sendo esquecida pelas empresas, pelos pesquisadores e cientistas. Uma lei do silêncio que foi implantada pelos próprios homens que haviam estudado o planeta. Os estudos de Gantis nunca chegaram a sair de Sontrum, e os sontrumianos cuidavam para que isso nunca acontecesse. O resto da população de Sontrum eram os descendentes da equipe de Gantis. Boa parte morreu, boa parte se adaptou.
Eelan estava chocado. Sabia o que aquilo tudo representava. Estava quase atingindo um estado de desespero, quando pôde perceber uma voz em sua mente:
* Agora, você sabe. – era Hai-kensh. Eelan já tinha certeza de que eles podiam se comunicar mentalmente, mas não entendia como não conseguia entrar na mente deles. Agora, ele havia percebido a causa: eles não deixavam.
* Sim. Eu sei. O que será de mim? – perguntou ele, estabelecendo o link telepático. Percebeu então que usaria muito pouco a língua falada pelo resto de sua existência. Sua vida já estava transformada.
* Só o futuro dirá. – respondeu Hai-kensh. Aos poucos, Eelan ia percebendo as mentes de todos os sontrumianos presentes no local. Todos se comunicavam por telepatia. Era um mundo muito diferente.
* Porque você não me avisou? Porque não me disse isso quando eu ia pousar aqui?
* Você escolheu seu caminho. Você desviou a estrela, você se reviveu. Você tem o poder. Seu destino era aqui. Sua vida, por bem ou por mal, termina aqui. Minha missão era apenas apresentá-lo à realidade daqui. Agora, você a conhece, você pode aprender o kirss. Você sabe o que te aguarda. Você mesmo descobriu seu caminho. Eu disse: “adapte-se”. Se você conseguiu ou não, só o tempo dirá. Só o tempo dirá.
* E o chamado de rádio? Eles virão me buscar. O que vamos fazer?
* Eles não virão. Fique certo disso.
* Mas é uma mudança muito grande! O que eu vou fazer? Eu não nasci aqui. Não fui criado para isso! Como vou me acostumar com isso?
* Adapte-se, Eelan. Adapte-se.
No dia seguinte, Eelan acordou, e por seu corpo estavam espalhadas centenas de pequenas manchas roxas.

Ciro Inácio Marcondes



















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